Camuflada

Folhas de papel com marcas de café, nariz encarnado devido à insistência de que não tinha frio, escrevia num caderno virgem que esperava por ser consumido por histórias do que nunca foi. A caneta era agora o seu instrumento, não o lápis ou a lapiseira. Estava suficientemente segura para assumir tudo o que escrevia, incluindo os erros ortográficos. Três chávenas de café davam-lhe o incentivo que precisava para começar a escrever.
Sentia falta de não sentir falta de quem ocuparia aquela cadeira vazia que olhava para ela tão ferozmente. Era uma mulher confiante, cheia de vontades e desejos. Muitas tardes e noites passava ela a escrever sobre paixões momentâneas e conversas que nunca aconteceram. Muitas noites hipnotizada com sonoridades únicas, que a faziam relembrar momentos nunca vividos. O escrever na rua, no meio de tanta gente, de tanta gente diferente, criava nos outros a ilusão de pertencer à mesma espécie dos que a rodeavam. O estar ali rodeada de outros seres fazia com que se sentisse mal representada. A raça humana não a incluía a ela, não incluía seres que eram solitários por escolha mas que tinham uma necessidade psicológica de não o ser. A contradição era óbvia, mas não havia melhor maneira de o explicar. Estava sozinha, gostava de estar sozinha, mas tinha um vazio mental no sítio onde devia estar a sua companhia.
Uma rua longa, cheia de gente, gente que interagia, e tão vazia, onde só estava ela. Talvez com o tempo a encha com outros seres sonhadores e contadores de histórias. Só espera é que não a encha completamente, senão não haverá história para contar.
Levantou-se, vestiu o casaco, agarrou no jornal e na mala e foi para casa. Quem a vê passar pensa que é humana. Não se enganem, caríssimos, é bicho de outro mundo.

publicado por verbistantum às 21:20 | link do post | comentar