Escre(ver)

Portuguesa, claramente portuguesa. Estava com o cabelo preso por um gancho escondido e com os óculos de sol que deixavam ver os seus olhos (tinham umas lentes âmbar muito subtil que pareciam pretas). Estava um dia de sol e calor, a roupa colava-se ao corpo e o gelo derretia mal era posto nos copos. As esplanadas estavam cheias e os toldos abertos, a música melodiosa do outro lado do Atlântico tocava baixinho e as turistas espanholas davam uso aos leques ainda com etiqueta.
Vinha do seu passeio, fazia-o algumas vezes por semana, sempre que conseguia fugir. Cheia de calor e de vontade de se sentar à sombra e pousar a mala, chegou à esplanada onde a atendiam sempre com muita atenção e simpatia. A sua mesa predilecta estava ocupada - turistas. Enfim, o seu café e água viriam como vêm sempre, cheio e fresca, para acalmar o corpo antes de começar a escrever. O pedido chegou, a inspiração andava perto.
Devorou cada palavra que tinha sido escrita por dedos cheios dela como que de uma presa indefesa perante uma leoa faminta se tratassem. Cada vírgula, cada ponto, cada palavra saboreada e digerida. Às vezes apercebia-se que o lia com uma voz interior diferente, mais pausada, mais melodiosa, do modo que seria quando lhe contasse os seus desejos ao ouvido.
Quando as primeiras palavras apareciam no papel a mão não parava para as reler antes de continuar. Não parou e não deixou observar mais nada, reler mais ninguém, pensar em mais coisa nenhuma. Tinha a sorte, ou o azar, de ter dedos que pensavam, que tinham ideias próprias e que a levavam a mundos onde nunca tinha pensado estar.
A folha de papel transforma-se em pele macia e a caneta preta em contornos de rostos e corpos que se confundiam com sonhos que nunca tinha sonhado. As palavras riscadas eram agora cicatrizes que não tinha chegado a ver, as que não tinha chegado a beijar e as que não tinha chegado a mostrar. A marca de café na folha lábios que não chegaram a ser tocados pelos seus, as linhas onde escrevia barba que gostava de dizer estar muito comprida como provocação inocente. O metal da caneta os reflexos acastanhados que atravessavam os cabelos negros, o brilho que enchia os olhos pequenos e profundos quando sorria. A luz não era aquela, era uma mais impossível, uma mais amarela e violeta, uma mais filtrada e escondida, que só iluminava onde ela os queria, naquele sítio que foi, que nunca foi, que nunca chegou a ser.
A toalha de mesa derretia surrealistamente e era lençóis, vestidos, casacos e camisas, meias rasgadas e botões desapertados. A chávena branca o peito e a barriga onde nunca se tinha encostado, as pernas onde nunca se enlaçou, os dedos que nunca foram seus. O açúcar que a olhava do fundo da chávena ele e ela e o desejo que não se extinguiu. Doce nos seus lábios, doce nos lábios dele, açúcar para almas doces que derretem e desaparecem nos braços um do outro.
Estava calor, estava na hora. Voltaria em breve, como sempre, como nunca.
publicado por verbistantum às 01:03 | link do post | comentar