Quarta-feira, 10.04.13

Cadeira

Havia uma cadeira.
No quarto que nunca era o mesmo havia uma cadeira de madeira. Ao lado da única e alta janela que deixava entrar a luz de fim de tarde que passava pelas cortinas brancas, e sobre uma carpete azul acinzentada, estava a cadeira onde ele se iria sentar. Era mais um dos muitos desafios que gostavam de fazer um ao outro.
Sentou-se, já sem a camisa e o casaco de que ela tanto gostava (nunca lho tinha dito, mas adorava quando ele usava aquele cinzento com a camisa branca com os dois primeiros botões desapertados), despido de roupa, o seu corpo esperava por ela. 
A sedução não era o que queria agora, estavam para além disso, já estava mais que convencido que pertencia ali, que pertencia a ela. Juntou as pernas, mas não os joelhos de modo a que ela ficásse confortável, manteve os pés no chão e levou a mão direita às costas dela, puxando-a para si. Para a ter ao colo como queria, peito com peito barriga com barriga, com a mão esquerda sentou-a em si e manteve a mão numa das curvas dela que adorava. Ela pousou a mão esquerda no braço frio da cadeira, equilibrando-se, a outra estava a brincar nos lábios húmidos dele, cheios dela. Os joelhos saíam da cadeira, mas conseguiu manter-se como ele a queria prendendo os pés entre o fim do assento e o início das pernas de madeira de carvalho escura. Ele estava dentro dela, do corpo e da alma, tão próximos que dançavam em uníssono, acompanhavam os movimentos um do outro, gemiam ao som da madeira que não chiava, encontravam-se no local estranho que era o único que conheciam.

Havia uma cadeira. Já não há - mas não é por ter deixado de lá estar. Estará onde sempre esteve e onde muitos outros a deixaram. Já não há não porque o quarto nunca era o mesmo, mas porque tinha sido só aquele, o que nunca foi.

(Por aquele quarto muitas outras almas passaram. Uma e outra. Nunca mais aquela cadeira viu uma almas como a que ali esteve.) 

publicado por verbistantum às 03:47 | link do post | comentar

Porcelana

Era porcelana. Era apenas uma peça de louça que tinha apenas um único propósito: conter grandes quantidades de água e quem nela se mergulhava.
O martelo que sem piedade partia em pequenos pedaços inúteis aquela peça de design barato fazia um som barbárico quando o metal a quebrava, que para ela continha um significado imenso, mas para o homem que tinha contratado (alto, vestido de camisola de lã preta cheia de borbotos e calças caqui manchadas de tinta de outras obras) era o som de um normal dia de trabalho.
Aquela banheira era uma das pequenas grandes coisas da sua vida. Daquelas que não importavam no sentido físico mas sim no que simbolizavam - algo que importava, e muito. As noites que passaram juntos ali (sim, juntos) não podiam ser partidas em pedacinhos pequeninos. Essas noites faziam parte dela agora. Era, no entanto, a única coisa material que restava de quem tinha tido por ela um carinho tão grande, tão único.
Estava na hora. Viu momentos da sua vida a serem varridos para uma pá encarnada e ainda com etiqueta, já amarela e ilegível. Assim, tão simples. Era só uma banheira. E agora já não era.
Nunca mais voltou àquele apartamento, àquela cidade, àquela vida. Mas voltou a ele. Voltava a ele de vez em quando, quando precisava. Não para ele, a ele. Abria a gaveta do armário mental das tardes e noites passadas naquela banheira e fechava-a mais feliz. Talvez ele fizesse o mesmo. No céu há gavetas ?

publicado por verbistantum às 02:37 | link do post | comentar

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