Isqueiro

Um carro, à noite, estacionado na margem de um rio.

A lua ilumina a água suja e os faróis acesos mostram a humidade que pairava no ar. Sentada, chaves na ignição, mãos ferozmente agarradas ao volante e motor a trabalhar. De olhos muito abertos e maquilhagem impecavelmente aplicada, olhava para o pinhal sem fim que não a olhava de volta. O peito subia e descia a uma velocidade que indicava medo, talvez antecipação, talvez arrependimento. Estava com os dedos dos pés enrolados dentro dos sapatos, com a pele do peito arrepiada, com os lábios entreabertos e com as costas direitas contra o banco. Só agora conseguia ouvir o rádio cheio de interferências que não tinha chegado a desligar. Sentia agora o ar pesado, a precisar de ser renovado. Tirou as mãos do volante e apercebeu-se da força que estava a fazer para as manter assim. Desligou o carro, passou um lenço pelo volante e saiu.
Limpou o batom dos lábios e atirou o lenço para o rio, soltou o cabelo e despiu a camisa manchada. Fechou o casaco que se colava ao corpo, que relevava a forma natural dos seios, que tinha sido feito à sua medida, e pegou na única coisa que trazia consigo - o isqueiro dele. De metal, personalizado com monogramas nas quatro faces, era uma peça fenomenal. Imponente, respeitável, única e com umas boas décadas de vida em si. Acendeu-o e ateou fogo à camisa. Quando o último pedaço de algodão desapareceu em cinzas que o vento varreu para o rio, olhou para as luzes da cidade que dormia, na outra margem, lá longe. E com o mesmo mistério encantador com que tinha chegado, partiu.

Contemplando fotografias a preto e branco, comidas pelo tempo, disse para quem queria que estivesse encostado a seu lado: “Minha sereia pescada nas águas que pensava serem minhas, espero que esteja com quem ama e com quem a ama a si. Estou bem, sei que é isso que me quer perguntar. As coisas que não são precisas no mar continuam onde as deixou, intocadas pelo tempo. Sei que me responde em sonhos, talvez seja por isso que o meu corpo não me deixe adormecer - Perguntou na mesma: Porque não me deixou morrer?

publicado por verbistantum às 03:49 | link do post | comentar