Sou

Sabia que a palavra escrita era muito poderosa. Muito mesmo. A caneta deliza sobre o papel, demasiado lenta para a velocidade a que o pensamento se propaga. Os pontos e as vírgulas apareciam com estranha naturalidade e, no meio de todas as ideias que tinha, eram as palavras de afecto que eram imediatamente escritas nas margens da folha, com medo de as perder. Às vezes as histórias que queria contar apareciam em fragmentos, em apontamentos que não eram coerentes à partida. A flor que tinha visto, a cor que deveria ser descrita cuidadosamente e num sentido metafórico, o gesto que a tinha inspirado. Os dedos doíam da força que fazia ao escrever as palavras que a entusiasmavam, quase rasgando o papel por vezes, com medo de perder o raciocínio, de voltar ao mundo antes do ter concluído. 
Escrevia a história de seguida, com café a correr pelas veias e páginas virgens a pedir para serem manchadas. Gostava de escrever sentada, confortável, num café ou numa esplanada, onde não havia silêncio mas também não havia barulho.
Não se importava que viessem ter consigo nem que a cumprimentassem; não se importava de trocar dois dedos de conversa com quem procurava algum tipo de esclarecimento, importava-se sim quando as pessoas achavam que se deviam aproximar de quem ouviram falar ou viram numa noite de excessos. Porque não a reconhecem apenas, acham que a conhecem. Criam uma proximidade que não existe.
Enfim... não era nada disto que lhe queria contar hoje. Desviei-me completamente do assunto, para variar. Não dormi esta noite e o segundo café nunca mais chega. Acho que o empregado se esqueceu do meu pedido, coitado, vou relembrá-lo. Espere um bocadinho que vou fazer aquele sinal que odeio para chamar o jovem aqui à mesa.
Ah, muito melhor agora. Bem, fizeram-me uma pergunta e é a essa pergunta que queria responder hoje.
"Quem é quando ninguém está a ver ?"
Sou a mulher que passeia os dedos pelo seu peito, que brinca com a sua imaginação e antecipação, o vê a acumular tensões, desejos, a identificar-se e a acelerar o ritmo de leitura, a respirar como este 'ele' e a imaginar esta 'ela'. Sou quem o faz olhar para o infinito sem foco, horas após ter lido uma história que escrevi, pensando ser o que a tem nos braços. Mas isto não é bem uma resposta à pergunta, pois não ?
Sou eu, apenas eu sem todos os filtros cuidadosamente construídos que retiram os sedimentos da minha personalidade (parte dela) e que apresentam os aspectos que acho serem os mais atractivos para quem me lê. Sou eu, sou como muitas mais. O que aqui lê e extrapula, o que quer que seja que a sua imaginação cria, será muito melhor e pior que a verdade. É isso que eu faço e é isso que eu sou. Um despertador que acorda sensações que não sabia estarem adormecidas, sou uma maneira de fugir da sua vida e de viver a d'ele'. Sou quem o leva ao encontro desta 'ela' que é tudo o que quer que ela seja. Levo-o a uma mulher que só existe quando precisa que ela exista. Sabe onde me encontrar, sabe que só a encontra a ela se me encontrar a mim e sabe que só a encontra quando a procura. Sou 'ela' e você é 'ele'. Sou palavras e sou sensações.
Espero ter respondido à sua pergunta. Preciso de mais um café.

publicado por verbistantum às 00:58 | link do post | comentar | ver comentários (5)