Um Corpo, Duas Almas
À espera de um eléctrico que a levaria aos próximos dois dias da sua vida, começa a rabiscar na margem do jornal já lido e relido. Palavras dispersas destinadas a morrer ali mesmo, frases demasiado pessoais para não serem imediatamente riscadas mal nascem. Não se conseguia concentrar, não com tanta gente à sua volta, a tapar o sol e a ajustarem-se uns aos outros. Muita gente, muita confusão. Conseguia ver casais apaixonados, outros cansados, e indivíduos desejosos de chegar a casa. Chegar a casa - era essa a missão a cumprir. Ou pelo menos, era o que parecia ser. Nenhum livro à vista. Tablets, telemóveis e tecnologias portáteis não faltavam nas mãos dos que a rodeavam, mas de livros não via nada. Reparou porque associar um livro a quem o lê era um jogo que gostava de fazer. Nada mais que um entretém. Alguns têm o tetris, ela tinha imaginar vidas. Podia ser pior.
A cada palavra que escrevia sentia mais e mais olhos a tentar ler o que rabiscava. Letra pequena, torcida, dificultava o satisfazer da curiosidade. O familiar som dos carris a serem usados começou-se a aproximar e a agitação das pessoas confirmou o que ouvira. Teve pena, gostava de sentir o vento e o sol do fim do dia. Quando chegasse a casa já seria noite, mas até lá iria à janela a tentar apanhar os últimos raios de sol do dia.
Isto de ‘ser hábito’ fazia-lhe confusão. A repetição exaustiva de rituais era algo que desprezava, talvez por não compreender o porquê de tanta gente ser obrigada a o fazer. Desconhecidos que via vezes sem conta, sempre ali, àquela hora. Não gostava de surpresas, mas odiava a rotina. Orgulhava-se em poder dizer que tinha uma vida boa, desejável, imprevisível por vezes, diferente da dos outros. Talvez fosse outra ilusão.
Ir a sítios onde nunca tinha ido era dos seus passatempos favoritos. Recebia alegremente sugestões de sítios novos que amigos ou conhecidos recomendavam e esforçava-se para os ir visitar. Sempre sozinha, queria criar memórias suas, era egoísta nesse aspecto. Não gostava de não estar dentro dos assuntos que estavam a ser falados e por isso consumia jornais e informação constantemente. Procurava ler e ouvir mais, assimilar mais conteúdos, ter opinião sobre eles, poder estar ao nível dos que com ela conversavam. Procurava saber o que todos menos esperariam que soubesse. Era aí que estava a mão vencedora.
Acho que acabava por viver no passado, num passado em que nunca viveu mas que tinha a sorte de poder experimentar. Era uma nostalgia de uma vida vivida não por ela, mas que a ela se agarrava totalmente. Uma mente já gasta, já cheia de vida em si, partilhava um corpo com outra que tinha ainda tanto que viver.