Terça-feira, 19.03.13

Um Corpo, Duas Almas

À espera de um eléctrico que a levaria aos próximos dois dias da sua vida, começa a rabiscar na margem do jornal já lido e relido. Palavras dispersas destinadas a morrer ali mesmo, frases demasiado pessoais para não serem imediatamente riscadas mal nascem. Não se conseguia concentrar, não com tanta gente à sua volta, a tapar o sol e a ajustarem-se uns aos outros. Muita gente, muita confusão. Conseguia ver casais apaixonados, outros cansados, e indivíduos desejosos de chegar a casa. Chegar a casa -  era essa a missão a cumprir. Ou pelo menos, era o que parecia ser. Nenhum livro à vista. Tablets, telemóveis e tecnologias portáteis não faltavam nas mãos dos que a rodeavam, mas de livros não via nada. Reparou porque associar um livro a quem o lê era um jogo que gostava de fazer. Nada mais que um entretém. Alguns têm o tetris, ela tinha imaginar vidas. Podia ser pior.
A cada palavra que escrevia sentia mais e mais olhos a tentar ler o que rabiscava. Letra pequena, torcida, dificultava o satisfazer da curiosidade. O familiar som dos carris a serem usados começou-se a aproximar e a agitação das pessoas confirmou o que ouvira. Teve pena, gostava de sentir o vento e o sol do fim do dia. Quando chegasse a casa já seria noite, mas até lá iria à janela a tentar apanhar os últimos raios de sol do dia.
Isto de ‘ser hábito’ fazia-lhe confusão. A repetição exaustiva de rituais era algo que desprezava, talvez por não compreender o porquê de tanta gente ser obrigada a o fazer. Desconhecidos que via vezes sem conta, sempre ali, àquela hora. Não gostava de surpresas, mas odiava a rotina. Orgulhava-se em poder dizer que tinha uma vida boa, desejável, imprevisível por vezes, diferente da dos outros. Talvez fosse outra ilusão.
Ir a sítios onde nunca tinha ido era dos seus passatempos favoritos. Recebia alegremente sugestões de sítios novos que amigos ou conhecidos recomendavam e esforçava-se para os ir visitar. Sempre sozinha, queria criar memórias suas, era egoísta nesse aspecto. Não gostava de não estar dentro dos assuntos que estavam a ser falados e por isso consumia jornais e informação constantemente. Procurava ler e ouvir mais, assimilar mais conteúdos, ter opinião sobre eles, poder estar ao nível dos que com ela conversavam. Procurava saber o que todos menos esperariam que soubesse. Era aí que estava a mão vencedora.
Acho que acabava por viver no passado, num passado em que nunca viveu mas que tinha a sorte de poder experimentar. Era uma nostalgia de uma vida vivida não por ela, mas que a ela se agarrava totalmente. Uma mente já gasta, já cheia de vida em si, partilhava um corpo com outra que tinha ainda tanto que viver.

publicado por verbistantum às 23:57 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Camuflada

Folhas de papel com marcas de café, nariz encarnado devido à insistência de que não tinha frio, escrevia num caderno virgem que esperava por ser consumido por histórias do que nunca foi. A caneta era agora o seu instrumento, não o lápis ou a lapiseira. Estava suficientemente segura para assumir tudo o que escrevia, incluindo os erros ortográficos. Três chávenas de café davam-lhe o incentivo que precisava para começar a escrever.
Sentia falta de não sentir falta de quem ocuparia aquela cadeira vazia que olhava para ela tão ferozmente. Era uma mulher confiante, cheia de vontades e desejos. Muitas tardes e noites passava ela a escrever sobre paixões momentâneas e conversas que nunca aconteceram. Muitas noites hipnotizada com sonoridades únicas, que a faziam relembrar momentos nunca vividos. O escrever na rua, no meio de tanta gente, de tanta gente diferente, criava nos outros a ilusão de pertencer à mesma espécie dos que a rodeavam. O estar ali rodeada de outros seres fazia com que se sentisse mal representada. A raça humana não a incluía a ela, não incluía seres que eram solitários por escolha mas que tinham uma necessidade psicológica de não o ser. A contradição era óbvia, mas não havia melhor maneira de o explicar. Estava sozinha, gostava de estar sozinha, mas tinha um vazio mental no sítio onde devia estar a sua companhia.
Uma rua longa, cheia de gente, gente que interagia, e tão vazia, onde só estava ela. Talvez com o tempo a encha com outros seres sonhadores e contadores de histórias. Só espera é que não a encha completamente, senão não haverá história para contar.
Levantou-se, vestiu o casaco, agarrou no jornal e na mala e foi para casa. Quem a vê passar pensa que é humana. Não se enganem, caríssimos, é bicho de outro mundo.

publicado por verbistantum às 21:20 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Percepção

Nuvem, sol, sol, nuvem. Aquela luz que ora ameaçava calor ora ameaçava ser hora de vestir o casaco. Estava sentada, a escrever, lá fora numa mesa de esplanada cheia rodeada de espanhóis. Era compreensível, pensou. Estava no coração da cidade, num dos cafés mais emblemáticos da sua cidade. De onde se sentou conseguia ver a rua até ao fim, as formiguinhas muito ocupadas que a subiam e desciam e os empregados dos cafés a esforçarem-se por atender toda a gente. Viu uma, duas, três pessoas que conhecia; uma, duas, três que a reconheceram a ela. Cumprimentou um ex-deputado que a conhecia desde antes de ter nascido e que nitidamente não a reconheceu imediatamente. As pessoas crescem, evoluem, transformam-se em alguém diferente. A maneira como se sentiu despida perante os olhos daquele homem fê-la abrir o jornal à sua frente ao sentar-se, como que de um escudo se tratasse. Não que tenha feito qualquer tipo de comentário brejeiro nem nada que se pareça, mas porque ela ainda o via como se tivesse cinco anos e estivesse a olhar para cima, para alguém importante. A percepção que ele tinha dela tinha mudado, mas a que ela tinha dele não. Sentaram-se então, melhor, ele sentou-se na mesma mesa onde ela estava, quebrando agora totalmente a sua linha de pensamento. Falaram sobre tudo e sobre nada, até porque ela sabia bem como não responder ao que não queria que os outros soubessem. Tinha aprendido isso à algum tempo, que o que fica por dizer é muitas vezes mais importante do que o que se diz.
Quatro horas. Estava ali à conversa há quase meia hora e só pensava na vontade que tinha de se descalçar, de ir para casa ouvir os discos que tinha acabado de comprar. Essa era uma das suas características: Estava demasiado tempo sozinha em casa mas sempre que saia só queria era voltar.
Pequenas discussões sobre ideologias políticas divergentes em alguns aspectos e sobre os fundamentos da economia que não estavam a ser bem empregues. O telefone tocou. O dele, o dela nunca tocava, não àquela hora. Deu-lhe tempo para olhar em volta, para as pessoas, para os rostos cansados e cabelos rebeldes que passavam por si. Gostava de inventar histórias para as pessoas que passavam. Pequenos apontamentos de uma história de vida, baseados em expressões, roupa, sacos de compras e tons de voz que traziam consigo. Quase sempre eram trágicas, mas só por acaso.
Com o fim do telefonema o homem despediu-se, enviando cumprimentos para a família e convidando-a para vir tomar outro café um dia destes. Disse que sim, claro, mas sabia que nunca o iria fazer. Vidas diferentes, pensou.
Respirou fundo, estava, de novo, sozinha. Rodeada de barulho, de cantorias de rua e de vozes cheias de sons indefinidos e incompreensíveis. Estranhamente, não a incomodou. Era agora o momento certo para começar a escrever a sua história.
‘Menina ?’ – Ouviu lá ao longe a voz que a chamava, tocando-lhe no ombro. ‘Desculpe, mas vamos fechar.’

publicado por verbistantum às 19:04 | link do post | comentar

O Que Fica

Em todos aqueles anos, não lhe enviou uma única carta.

A chuva tinha deixado no ar aquele cheiro característico a terra molhada. Com medo de escorregar decidiu abrandar o passo. \'A calçada portuguesa não era amiga das portuguesas\' - tinha lido a frase numa revista qualquer há uns anos. Estava à procura de um vestido para mais um dos jantares a que não podia faltar e ao qual não queria ir. Tanta coisa tinha por ali passado nos últimos anos que as memórias mais distantes já não era imediatamente associadas àquela rua. Depois de várias tentativas falhadas, entrou numa loja onde encontrou o que estava à procura - um vestido azul escuro, muito escuro, quase preto. Era um tom parecido com um vestido que tinha tido há muito, muito tempo. Na altura nem isso lhe passou pela cabeça. Saiu da loja, olhou para os sacos e decidiu que estava na hora de voltar para casa. Subiu a rua em direcção à praça onde tinha estacionado e, mal parou à espera de atravessar a estrada lembrou-se que tinha deixado o cartão de crédito na máquina da loja. Apressou o passo e com dois sacos numa mão e um na outra começou a descer outra vez a calçada.
Tinha olhado para outro lado da rua inconscientemente e um arrepio apoderou-se do seu corpo. Parou. Não podia acreditar, estava ali.
Do outro lado da rua um homem caminhava na direcção oposta, subia a calçada de jornal na mão. Olhou para o lado e viu-a. Estavam os dois, parados, a olhar um para o outro, sem saber o que pensar, como reagir. Tantos beijos, tantas palavras, tantas tardes e tantas noites que reapareceram na memória de cada um. Ela sorriu. Ele respirou. Com um leve inclinar de cabeça conseguiu perguntar-lhe tudo o que queria perguntar. Com o esboçar de um sorriso compreensivo respondeu-lhe a tudo o que queria saber. Estava bem, era feliz. E ainda partilhavam aquele carinho especial um pelo outro.
Enquanto ela apertava as suas mãos uma contra a outra, para parar de tremer, e olhava para baixo para ajustar a posição dos sacos, ele olhou em frente e seguiu caminho. Aliviada por ter sido ele a dar o primeiro passo, continuou a descer a rua, sabendo que ele não iria olhar para trás para a ver. Recuperou o cartão e foi para casa, incrédula. Tinha tudo sido meio surreal, como tudo a tinha levado ali, àquele momento, por aquela razão.
Afinal de contas, tinha ido comprar um vestido azul, quase preto, como os que ele gostava.
publicado por verbistantum às 01:20 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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