Gatilho
"Estou farto de palavras."
"Ai sim ?"
"Sim."
"Está bem."
Há diferentes maneiras de acordar. Bruscamente, calmamente, alerta, assustado.
Ela estava no meio de um acordar agradável, a luz a filtrar através da janela o calor do sol que chegava aos cobertores, aquecendo-os tanto ou mais do que ela os aquecia.
Um tom de cor apoderou-se das suas maçãs do rosto. Ela abriu os olhos e olhou para o tecto. Imagens fragmentadas daquela tarde passeavam na sua memória, e até isso era suficiente para fazer as suas mãos começarem a delinear círculos pela barriga abaixo.
Sente arrepios que descem desde o peito até ao interior que ambas as coxas e afasta os lábios como que a tentar alcançar o sabor fantasma que ainda tinha a impressão de conseguir saborear.
Em certa altura, a palavra falada é inerentemente poderosa. O poder hipnótico do tom seguro e escolha certa de vocabulário podem fazer tudo o que lhe quero fazer fisicamente sem lhe chegar a tocar, atingindo-o meramente com a frase certa. É por isso, talvez tenha reparado, que está a ler isto. É por isso que volta aqui, para mim, noite após noite, e se deixa mergulhar nas coisas que tenho para dizer. As minhas mãos não podiam estar mais longe das suas pernas, os meus lábios não podiam estar mais longe dos seus e no entanto evoco em si a mesma emoção, com palavras cuidadosamente posicionadas num conjunto de frases afirmativas. Consigo fazer com que se afunde na cadeira, esboçe um sorriso e com que morda os lábios. Consigo fazê-lo corar. E consigo segredar lhe mil silêncios ao ouvido, e consigo fazer muito mais sem o contacto físico, mas admito que esta última parte é um toque delicioso.
Importa, sabe? Cria-se uma sensação totalmente diferente quando mudamos os detalhes. Todas as particularidades de todas as cenas importam, e é aí que encontra o tom de tudo, o comportamento e a percepção. Troque seda por algodão, e o enquadramento será visto numa luz diferente.
Penso nestas coisas, nas combinações que criarão o cataclismo para o seu prazer e que irão dar o mote para as horas seguintes. Quanto mais o conheço mais quero entrar dentro da sua mente, fazer parte da criação de um estado espírito muito específico em si, e vê-lo sucumbir a cada bocadinho que passa, criando sensações em que me revejo. Provoca em mim sensações nunca antes sentidas. Sabe a victória, a concretização, a validação. A maneira como as minhas mãos corriam pelo seu corpo faziam-no querer-me cada vez mais. Como se isso fosse possível. Eram festinhas perigosas. Dedos a pressionar a sua pele, deixando para trás pequenas marcas, pequenas depressões que sabia que iriam desaparecer num minuto, mas que por agora eram muito reais, muito presentes. Reclamando como meu tudo o que encontrava, agarrando, mordendo, deixando a minha marca, marcando território, fazia-o sentir seguro. Dedos a agarrá-lo como se fosse a única jangada que me levaria para fora de uma ilha deserta.
A improvisação, como se fizesse da minha mão um saxofone e os meus dedos dançassem nessas válvulas, produzindo música e sensações com uma harmoniosa melodia. O jazz que radia de duas almas que, a cada nota, dançavam cada vez mais perto, ao som um do outro.
Ele não se considerava um homem impaciente. Tinha passado grande parte da sua vida a acreditar precisamente no oposto, desde a sua vida profissional ao tempo que tinha conseguido sobreviver romanticamente sem ser capaz de se deixar sucumbir às coisas que estava tão desesperado por fazer.
Os seus dedos entrelaçados no cabelo dela, encontram um nó e puxando, puxando, puxando, até o desembaraçar e este cair em vários fios, fica com a madeixa de cabelo a balançar-lhe pelos dedos. Os olhos dela abriram muito devagarinho e procuraram-no, fixando-se nos dele, ficando sua prisioneira.
Como a luz lhe afagava as costas e lhe iluminava o cabelo, como o lençol se drapeava desde o fundo das costas até aos seus pés, como tinha a cara protegida pelo ombro direito que a confortava. Será que ela sabe? Será que ela conseguia perceber o quando ele a queria naquele segundo? Estaria escrito na sua cara?
Ele tentou imaginar como ela o estaria a ver. Protector, talvez. Possessivo, de certeza. Perguntou-se como ela se sentiria, se a antecipação dominava os seus pensamentos, ou se seriam mais nervos, entusiasmo cauteloso a flutuar na sua barriga enquanto a sua mente pensava em cenário após cenário. Ele pensou que gostaria de saber, mas ele gostaria de tê-la mais. Bem, ela era dele. Toda e completamente dele. E ele sabia.
Agora, agora tinha-a, mas não na maneira que desejava. Não no sentido imediato, íntimo, físico. Tinha a sua alma, e queria o corpo dela também. Tentando desesperadamente manter o aspecto de calma e sossego só pensava no quanto a queria. E aí, todo o tipo de autocontrolo que tinha conseguido exercer até a este momento saiu do seu corpo. As suas mãos agarraram as curvas tão lindas que tanto o enternecem. A paciência tem limites, pensou.
Dizem que o silêncio é ouro, mas sempre pensei que fosse como prata derretida.
O ouro é macio e saturado, ostenta uma expressão de algo que é, pela sua própria natureza, calmo, contido e pessoal. A prata tem uma irreverência em si, e os silêncios estão quase sempre à espera do nascimento de uma ideia, de uma forma ou de outra.
Sem uma voz para divulgar os pensamentos, ficamos com eles, deixando-os a cozinhar em lume brando até fermentarem e extrapolarem, tornarem-se maiores e mais precisos, mais íntimos.
Envolvida em silêncio prateado, sem nada mais que o suspiro que deixa escapar uma ou outra palavra, e o suave brilho da minha própria imaginação, adormeço.
Não compreendo a procura do caminho da felicidade. De caminhos não percebo nada. Já de procura percebo alguma coisa. Procuro descobrir, aprender, conhecer. Procuro saber quem sou, mas mais importante que isso, procuro tornar-me em quem desejo ser. Aí começa o problema; quero tornar-me em alguém que não se pode definir. Como definir alguém que é um objectivo, que está em constante mutação e que não se contenta como ser estagnado?
Quem eu quero ser não é quem eu sou. Quem eu quero ser não é isto, mas ainda não sei o que é. Talvez nunca saiba, o que não me assusta. Sei que a evolução do ‘eu’ é constante e ter noção disso altera o meu ponto de vista perante a vida.
Acho bonito as pessoas que dizem que vivem o agora. Acho curioso as pessoas que dizem ter planos de 10 anos para a sua vida. Acho importante termos estas ideias, mas acho mais importante ainda termos a noção que nenhuma destas hipóteses é realista.
A vida é descrita como ‘o espaço de tempo compreendido entre o nascimento (ou concepção) e a morte’. É um espaço de tempo. É uma sucessão de momentos. É uma sucessão de ‘agoras ‘ que terão passado num instante. É claro que o que está a acontecer neste momento faz parte do nosso viver. Não, corrijo, do nosso existir. Ah, a diferença entre os dois é importantíssima aqui. A diferença entre os dois é o que me faz continuar a viver esta vida que não é a mesma para mim e para os outros.
Os planos que temos para a nossa vida são outro tipo de fantasias. O que queremos hoje e projectamos para o futuro, de modo egoísta e controlado, como se a nossa decisão fosse final, intocável face às marcas do tempo e do impacto que outros indivíduos e experiências têm na nossa vida.
Hoje, sentada no canto do sofá de que tanto gosto, a ouvir a música que tanto admiro, a sentir o doce raio de sol de inverno a delinear-me as pernas, consigo afirmar que não sou quem pensava que iria ser. E que feliz que isso me faz.
Marcada para sempre por momentos que nunca existiram, por hipóteses agarradas por impulso, por momentos que revisito cada vez que cheiro a mesma essência que foi tão presente na minha vida e de forma tão intensa. A mente é traiçoeira, não nos permite apagar memórias selectivas como gostaríamos. Somos constantemente bombardeados com imagens, sons, cheiros, sensações que nos levam de volta a um momento, a uma pessoa.
Gosto muito de pensar que as pessoas estão em constante evolução, que a cada momento que passa se alteram um pouco, se deixam influenciar, influenciam outros. O momento em que conhecemos alguém é chave. A fase em que se encontram na vida. O quando.
O processo de evolução de alguém não tem de ser bonito. Nem tenho a certeza se deve. As partes más são também importantes. Não vou dizer que é aí que se vêm os verdadeiros amigos, nem muito menos que é aí que mais precisamos de apoio. Vou antes dizer que é nestas alturas que nos descobrimos. E não temos de gostar do que os outros gostam em nós. Nem temos de gostar de quem somos. Acho que este é o momento em que sentimos que nós, e só nós, podemos mudar a nossa perspectiva face à vida. Ou, como eu, escolher outra.
O bom de “sonhar acordado” é isso mesmo: sonhar. Não magoamos ninguém, à excepção de nós próprios, e encontramos uma felicidade momentânea que à tanto ansiávamos sentir.
A descoberta de um outro mundo foi o que me salvou deste.
E sabem que não somos todos assim tão diferentes: não gostamos do chefe, não suportamos as tarefas do dia-a-dia, precisamos de uma pausa dos miúdos, queremos fugir.
A forma como nos entregamos a este sonhar acordado é o que difere de pessoa para pessoa. Como nos entregamos totalmente à fantasia é o que distingue os corajosos dos distraídos. Perdermo-nos em pensamentos é uma experiência repleta de prazer, de um prazer inocente e extraordinariamente belo, repleto de sensações.
E quando permitimos que alguém coabite este nosso mundo atingimos o ponto em que sabemos que esta fantasia se pode traduzir em realidade, que as nossas vidas encontraram a possibilidade de se deixarem afectar por uma outra alma. Podendo isto ser bom, ou não. A partilha de um mundo que era meu e passa agora a ser nosso necessita de ser explicado. A partilha de fantasias precisa sempre de ser só e apenas isso. A concretização do desejo, da vontade, do querer. As sensações nunca poderão dar lugar a mais nada. Será especial por isso mesmo. Por ser único e irreproduzível.
O realizar destes sonhos corre sempre o risco da desilusão. A quantidade de vezes que imaginamos algo, as variantes que criamos desta, as várias possibilidades, as projecções que fazemos nunca se materializarão por completo. E não podem. A linha entre os dois mundos tem que estar bem definida. A distinção do que eu quero do que eu tenho, do que existe, é o que faz com que isto funcione.
A vida de uma alma passa por muito ao longo dos anos. Aprende, confia ou desconfia mais nos outros, tem cada vez mais a certeza do que quer ou talvez não; Quando se depara com algo que a surpreende verdadeiramente assusta-se. Porque padronizou as pessoas, porque deixou de acreditar que coisas melhores eram capazes de vir ter consigo.
E, de vez em quando, lá aparece alguma coisa ou alguém diferente.
Ser diferente é bom, é tão bom.
Encontrar alguém com quem possamos falar abertamente sobre os nossos mais íntimos desejos e que nos permita chegar perto de si, que se abra perante nós, que nos permita beijar lhe a alma é difícil. É raro, daí ser tão bonito.
Estes são os momentos pelo qual vale a pena continuar. As pessoas que anseiam por nos descobrir, que nos tocam e marcam, o pedaço de nós que ficará sempre com elas e o pedaço delas que levamos connosco. Um sorriso, uma palavra, uma música, um sítio.
Se pensarmos bem, um mar vasto que ondula à nossa frente pode-nos seduzir e afectar tanto como uma pessoa. Pode nos levar a um momento de total catarse, limpar-nos a alma e servir como meio de libertação.
Sonhem acordados, estimulem o que têm dentro de vós. E não precisam de partilhar os vossos sonhos nunca, com ninguém. Mas sonhem, deixem a vossa mente perder o controlo, fechem os olhos e sintam-se a perder a forma corpórea. Sintam a alma que são e aproveitem para viver o que desejam.
Descubram o que vos dá prazer e não o deixem fugir, levem-no convosco, sempre. Estará sempre ali, quando precisarem.
O poder da criação está dentro de todos nós. Não o desperdicem.
Tudo é possível.
Saber escolher o momento. O memento. É crucial. É imperativo saber escolher o quando. Mais do que o como, o quando é o que faz do momento aquele momento.
Por momento não quero que se entenda o ano, dia, nem muito menos a hora. Por momento quero que se entenda o culminar de diversos factores que nos levaram àquele lugar, àquela situação, àquela pessoa. Porque, não acreditando na existência de um cosmos no qual as nossas vidas estão pré destinadas, acho extraordinários os momentos que presenciamos que são unicamente singulares. Aqueles em que temos a certeza de que não se irão voltar a repetir, que por isso são ainda mais extraordinários, que representam no fundo a fugacidade da vida. Nesses momentos sentimos que somos almas, somos espíritos que habitam uma forma física (que nos atrai) e que se interconectam através de sensações que escapam ao olho nu.
O toque, o sabor, o cheiro e os olhares fugazes que ficarão sempre associados àquele momento serão algo inexplicável, algo que se integrará na nossa pessoa e só em nós. E quando esses momentos são partilhados, as sensações são partilhadas, podemos entrar numa espécie de limbo. Um limbo que nos engole, que nos consome. Mergulhados num pensamento, perdemos forma, perdemos noção do espaço, tempo e de quem somos. Tornamo-nos quem eramos naquele momento tão querido. Ou quem gostaríamos de ter sido. E começamos a pensar … em como foi, ou como agora idealizamos que foi. Sentimos o passar dos dedos vagabundos da outra alma que tanto nos afectou pela nossa pele. Sentimos os raios de luz que passavam pelas finas cortinas da janela a iluminar-nos o rosto, a beijar-nos o corpo. Revivemos tudo num tempo que não existe, a uma velocidade que nós controlamos, como que se assim se tivesse passado.
O controlo do pensamento permite-nos (re)saborear momentos fugazes de uma outra maneira. Causa-nos as mesmas e até outras sensações. Permite-nos criar uma atmosfera que talvez não existisse na altura. Neste limbo consigo deixar de ouvir som. Consigo deixar de ouvir a vida que se passa à minha volta. Consigo bloquear selectivamente e cuidadosamente tudo o que pertence a este presente que quero descartar por agora. Quero estar comigo e com o meu pensamento apenas. Sem nada que me distraia ou quebre a minha linha de pensamento concentro-me em encontrar o princípio deste conjunto de sensações. O que despertou em mim a noção de que este seria um momento memorável ?
Sinto o cetim frio contra a minha pele. Como escorrega pelo corpo e me abraça. Cheiro o coco e maçã no meu cabelo, ainda quente de o ter secado. Sinto o pescoço encostado à almofada, os lençóis de algodão a acompanhar a curva das minhas costas, a entrelaçarem-se nas minhas pernas e a tentar aquecer os meus pés frios. Consigo sentir o vapor que ficou no ar do duche, a sala humedecida e aquecida pelas cutículas de água que pairam no ar. Consigo delinear o contorno de uma cadeira com roupa, de um móvel com um ecrã desligado, de um corredor que irá dar à porta que me leva de volta ao mundo real. Lembro-me de encostar a face à almofada e sentir uma linha de luz a deitar-se sobre os meus olhos, a relembrar-me que era de dia. Passo os dedos pela barriga, afago o cetim frio que os faz deslizar suavemente.
Sei que estou à espera, sei que tenho de esperar. Imaginando o que virá relembro-me das dúvidas existências que me assombravam dias antes.
Das dúvidas que todos, numa altura ou noutra, temos. Serei boa o suficiente? Porquê eu? – Sorrio, porque já sei as respostas.
A espera. A ansiedade que me consome. A vontade que se manifesta fisicamente. O querer que não é meramente físico materializa-se.
O desafio que será traduzir tudo isto para o mundo real. O desafio que será demonstrar o quanto este momento é especial, o quanto o quero, quanto me liberta a realização desta fantasia. A concretização de algo que era, outrora, irrealizável, adquire um outro significado. O atingir do impossível, do impensável, torna o momento em algo que nunca pode ser partilhado. Algo que não poderá ser repetido, descrevido, materializado.
A luz mudou. A que não era natural, a que espreitava por baixo da porta.
Sinto a presença de alguém. O som continua não existente. Porque, até agora, a minha respiração mantinha-se calma e paciente. A espera nervosa, mascarada de calma e sossego, era agora substituída pela energia que se apodera de mim, pela inconsciente esperança de que seja a outra alma à porta. E era. Estou preparada, quero este momento, desejo este momento, é agora.
A ordem de como tudo aconteceu torna-se irrelevante. Este é o meu mundo, eu controlo o que quero (re)sentir. Quero sentir o desejo a materializar-se, quero sentir a partilha de emoções e sensações que juntam estas duas almas de um modo tão singular, tão único.
Uns sorrisos de satisfação, uns olhares de perdição, uns beijos de contemplação. E tão (in)esperadamente como começou, acaba. A sensação de concretização, de satisfação profunda, de ter tocado numa outra alma apodera-se de mim. E sei. Sei que vou pensar muito neste momento. E saboreá-lo até não poder retirar mais nada dele. Sugar todos os pedaços desta vivência que nunca aconteceu. Esta vivência imaginada que me parece tão real. Este modo de fugir a uma realidade que não é a minha, com a qual não me identifico e na qual não desejo viver.
Neste momento em que me reconheço, eu sinto. E sinto algo que não posso, nem desejo descrever. Porque quero guardar essa sensação nos cantos recônditos da minha alma, para a poder ir buscar, quando precisar.
A realização impossível de fantasias está mais perto do que pensamos. Seja esta qual for. Basta permitirmo-nos entrar neste transe, cair neste limbo, e imaginar. Entrar neste mundo que é meu, só meu, e que vive dentro de mim.