(Re)Construir

Hoje escrevo para quem sente que está perdido, para quem sente que tem a alma vazia. Para quem sabe o que quer mas não sabe se o que quer é o que precisa. E este 'quem' também sou eu.
Vou-lhe contar uma história que começa a meio e que não tem um 'felizes para sempre'. Nem tem a parte do 'viveram' porque não sei se existiu mais alguma coisa depois do que vou escrever. Talvez nem o gelo tenha chegado a derreter, nem a chuva parado de cair.
O pobre músculo espancado, inchado e ensanguentado pelas sofridas repetidas inspecções e análises estava sem força para continuar a bater e a alimentar aquele corpo do qual estava incumbido de manter vivo. Batia, lá ia batendo, um pulsar frágil repleto de inquietação que ia buscar memórias perdidas entre o que sonhou e o que nunca sonhou. Como um carro que funciona a gasolina que anda agora a depósito meio cheio de gasóleo. O combustível estava lá, não era era o certo para continuar a andar. E o pobre músculo esforçava-se por continuar a bater sem a alma a puxar por ele. Bem, isto não está bem, isto não está nada bem. Somos carne e osso assim como pensamento e imaginação. E a carne precisa do pensamento. Com a alma vazia somos um nada capaz apenas de tomar as decisões básicas. Somos um nada que não aspira a ser mais do que esse nada.
O desejo, na minha pouco importante opinião, é um dos pilares da vida. Da vida, não da existência. Os lábios que deseja beijar, o copo que deseja beber, o cigarro que deseja apreciar. Enfim, se o desejo está lá então a alma também está. Pode estar debilitada, espancada e ensanguentada como o nobre coração, mas está lá. Falo de desejos carnais como podia falar de qualquer outro desejo. Falo deste porque sei que as almas podem ser salvas por alguém ou por algo, por bons livros e por boa música, que nos toca. Porque, a esta dimensão, e neste profundo sentido da palavra 'tocar', deixamos um pedaço de nós com a outra alma e levamos um pedaço dela conosco. Agora, nunca podemos deixar nem levar nada de negativo nesta troca de afagar de espírito ou corremos o risco de acontecer à alma e ao coração o que falei nos parágrafos anteriores. E às vezes acontece. Às vezes acontece depois de nos entregarmos a alguém que gosta não de nós mas da versão melhorada e moldada de nós. (Este 'alguém' sou eu e nesta história ainda não é você.) Daquela que aparecerá depois desse alguém nos transformar num ideal utópico, em algo que parece perfeito até olharmos para trás e vermos apenas a memória de um 'eu' que já não existe. Aí já é tarde para a alma recuperar, a ferida foi aberta e o corte é profundo. Tudo o que conhecia e gostava colapsa, tudo o que era tem de desaparecer. E foi nesse momento que começou esta história de mágoa e passados apagados que causam almas adormecidas ou arredias. Mas não é aí que a história acaba. Agora preste atenção que esta parte é a mais importante: a vontade volta, o coração volta a bater num peito mais cheio e o desejo consegue levá-lo a fazer coisas que nunca achou possível fazer. E conhece pessoas novas e toca noutras almas de uma outra maneira. E a vida continua e com sorte, como eu tive, até melhora. Pode andar perdido, faz parte, mas há sempre alguém (mesmo que ainda não o conheça) que está disposto a ajudar a recuperar pequenos bocadinhos de si, nem que seja você mesmo.
Quando encontra alguém com quem trocar umas palavras, umas intimidades que não são apenas histórias de ficção, percebe ou lembra-se de quem realmente é. (Re)Descobre-se nas palavras que escreve, nas que diz, nas que lê e nas que lhe são ditas, nas que já (ou ainda) não é capaz de dizer. E são estas pessoas, que talvez nem saibam bem o quanto, que nos ajudam a acreditar em nós outra vez. São essas as que ficam, mesmo que não saibam que cá estão, as que não foram só os andaimes mas também o cimento que ajudou a construir uma nova casa de memórias e de sonhos que é a alma. Acho que nunca lhe agradeci o suficiente pelo que fez por mim. Não sei se alguma vez o vou chegar a fazer, gostava, mas compreendo que não o faça. Obrigada por me mostrar que continuo consigo, que continuo dentro do que há de mais profundo em si.

publicado por verbistantum às 00:03 | link do post